terça-feira, 21 de setembro de 2010

Presidencialismo absoluto- Vicente Pinto de Andrade


1. A notícia segundo a qual o Presidente da Assembleia Nacional, Eng.º Paulo Kas¬soma, decidiu a suspensão temporária de qualquer acção de controlo e fiscalização do Parlamento angolano sobre as actividades do Executivo foi ig¬norada pela maioria esmagado¬ra da nossa comunicação social. As grandes excepções terão sido o semanário «A Capital» e a Rá¬dio Ecclesia, emissora católica de Angola. E mesmo assim, «A Capital» e a Rádio Ecclesia não lhe deram honras de primeira página. Isaías Samakuva, presi¬dente da UNITA, durante a sua última conferência de imprensa, teve o mérito de não ter deixado passar em branco uma tão má notícia para a vida democrática no nosso País. Os comentários do deputado do MPLA, João Pinto, vieram, não só confirmar a no¬tícia, mas também aumentar as minhas preocupações sobre o fu¬turo da originalidade do «sistema parlamentar-presidencial ango¬lano», quando afirmou que a le¬gitimidade do poder legislativo é idêntica à legitimidade do poder executivo.

2. Estou com Robert Dahl (De¬mocracia, 1999) quando afirma que a tarefa de elaboração de uma nova constituição, ou de revisão de uma já existente, não deveria ser realizada de ânimo leve e “é tão difícil e complexa como dese¬nhar uma nave espacial tripulada para investigar o espaço cósmi¬co.” A tarefa de desenhar uma nave espacial não deve ser entre¬gue a amadores, assim como “a concepção de uma constituição exige os melhores talentos de um país.” A grande diferença é que as inovações constitucionais im-portantes são para durar, e, por maioria de razão, exigem tam¬bém a aceitação e o consentimen¬to dos governados. Aparente¬mente, tivemos a possibilidade de escolher, entre três alternativas constitucionais, aquela que deve¬ria ter sido mais adequada para o futuro do nosso País. A prática começa a mostrar-nos que a solu¬ção constitucional escolhida pela maioria dos nossos deputados é a que oferece mais riscos para a es¬tabilidade política do nosso País.

3. Reconheço que não foi tarefa fácil para os nossos deputados. A intervenção do Eng.º José Eduar¬do do Santos marcou o rumo da discussão. Agora, a decisão do Eng.º Paulo Kassoma representa, sem dúvida, uma entorse na rela¬ção entre o Parlamento e o Poder Executivo. Estamos perante o facto de que a nossa Lei Funda¬mental é uma verdadeira obra de engenharia constitucional. Es¬tamos a derrapar para o “presi¬dencialismo absoluto”. A história política angolana aconselhava a escolha de um sistema de gover¬no que garantisse, claramente, a separação de poderes.

4. Há várias combinações possíveis de sistemas eleitorais e sistemas de governo. As demo¬cracias mais antigas privilegiam a combinação de um sistema par¬lamentar em que os membros são eleitos através de um qualquer sistema de representação propor¬cional. Nas democracias de lín¬gua inglesa, exceptuando os Esta¬dos Unidos da América, a opção foi por um governo parlamentar com eleições através do sistema «First-Past-the-Post: o primeiro na linha de chegada» (FPTP). A opção americana traduz-se na combinação de um governo pre¬sidencial com eleições FPTP e foi seguida por pouco mais de meia dúzia de países. A chamada op¬ção latino-americana resulta da combinação de um governo pre¬sidencial com eleições legislativas através de um sistema de repre¬sentação proporcional. Os países da América Latina têm mostrado forte preferência pelo sistema de governo presidencial, embora as¬sociado a um sistema eleitoral de representação proporcional. Em Angola, a escolha da maioria dos deputados foi, no fundo, a opção latino-americana, embora ajusta¬da “aos sabores e gostos locais”.

5. Nada justifica a suspensão da acção de controlo e de fisca¬lização do Parlamento sobre as actividades do Executivo. Não colhe o argumento de que está em curso a elaboração de um instrumento legal que estabele¬cerá um quadro normativo para o exercício da acção fiscalizadora da Assembleia Nacional. A op¬ção por uma forma de Governo de concentração de poderes ou por uma forma com divisão de poderes é determinada pela na¬tureza do regime político. E mes¬mo naqueles países de sistemas com divisão de poderes, o fun¬cionamento real da articulação dos diversos órgãos de soberania tem dependido muito mais da natureza do regime do que das prescrições constitucionais. Isto é, a relação existente entre os ci-dadãos e os respectivos órgãos do poder político é a grelha de análise apropriada para nos aper¬cebemos do rumo de uma demo-cracia nascente. Corremos o risco de regressão democrática, se não estivermos atentos aos reais e po¬tenciais malefícios do velho “pre-sidencialismo absoluto”. No pas¬sado recente, os três movimentos independentistas, MPLA, FNLA e UNITA, viveram essa experiên¬cia, que gerou ondas de violência. Hoje, temos que aprender com os erros do passado.

6. A manutenção da “estabili¬dade” democrática não é o único critério relevante para se obter uma boa constituição. A justi¬ça na representação, a transpa¬rência, a compreensibilidade, a sensibilidade e o governo eficaz, entre outros, também são impor-tantes. Contudo, do ponto de vis¬ta democrático, não existe uma constituição perfeita. Todas as disposições constitucionais têm algumas desvantagens. Por isso é que o projecto constitucional ou a revisão exigem juízos acer¬ca das soluções de compromisso aceitáveis entre os objectivos e os riscos e as incertezas da mu-dança. Ao longo da minha vida, acompanhei, e tenho acompa¬nhado, o falhanço da “democra¬cia presidencial”, nas repúblicas da América Central e do Sul. Acompanhei, e continuo a acom¬panhar, o estrondoso falhanço do “presidencialismo absoluto” em África. Acompanhei a ascensão e a queda da maior parte dos regi¬mes autoritários e totalitários na Europa. Essas são as razões que me levaram a partilhar a reco¬mendação de Robert Dahl (De¬mocracia, 1999), quando aconse¬lha que “não seria uma má ideia se um país democrático reunisse, mais ou menos de vinte em vinte anos, um grupo de constitucio¬nalistas, líderes políticos e cida¬dãos informados para avaliar a sua constituição à luz não só da sua experiência, mas também do conjunto de conhecimentos em rápida expansão obtido a partir das experiências dos outros paí¬ses democráticos.”

7. A democracia é um conjunto de regras e de processos. Englo¬ba, nomeadamente, o princípio da separação e equilíbrio de po¬deres: poder executivo, legislativo e judicial; a dessacralização dos detentores desses poderes; a afir¬mação e garantia dos direitos dos cidadãos; e a protecção da vida privada de cada indivíduo. A de-mocracia exige, evidentemente, a busca do consenso da maioria em relação ao respeito das insti¬tuições e das regras democráti¬cas. Para que a democracia possa instalar-se e consolidar-se, é ne¬cessário que o maior número de cidadãos acredite nela, e por ela seja capaz de lutar e sacrificar-se, caso seja necessário. Sem um consenso mínimo relativamente a determinados princípios, va¬lores, normas e atitudes, não é possível construir-se uma vida condigna.

Fonte: SA