segunda-feira, 13 de junho de 2011

Lenda tradicional e oral do grupo LUNDA-TCHOKWE - por José Vicente Martins


Lenda tradicional e oral do grupo LUNDA-TCHOKWE sobre a sua ascendência divina e criação do Universo

Segundo a história tradicional e oral, que o pesquisador José Vicente Martins ouviu, da boca dos mais idosos e categorizados chefes da tribos, Lundas Tutchokwe, que todos os povos negros descenderiam dos Bungus e estes directamente do Nzambi (Deus supremo da mitologia tchokwe).



Eis pois, tal como nos foi contada, a história da criação do Universo e a ascendência divina destes povos.

O Nzambi a quem também chamam Ndala Karitanga (Deus que se criou a si próprio) e Sã Kalunga (Senhor infinitamente grande, Deus supremo e infinito), depois de ter criado o Mundo e tudo quanto nele existe, criou uma mulher para que fosse sua esposa e para que, por seu intermédio, pudesse ter descendência humana, a fim de que esta povoasse a Terra e dominasse todos os animais selvagens, por ele também criados. Disse a sua esposa que passaria a chamar-se Ná Kalunga, em virtude de a filha que iria dar à luz, se chamar Kalunga.

Com efeito, tal como o Nzambi tinha anunciado, passados nove meses, nasceu sua filha Kalunga. Esta foi crescendo como qualquer criança normal, junto de seus divinos pais, na tchihunda tcha Nzambi (aldeia de Deus).

Logo que sua filha atingiu a puberdade, o Nzambi, seu pai, informou Ná Kalunga, sua esposa, que tencionava fazer uma caçada, durante os três meses da época seca e que, para não ir sozinho, levaria sua filha com ele.

Esta resolução não agradou à divina esposa que tentou opor-se a que sua filha o acompanhasse. Porém, o Nzambi lembrou-lhe que ela tinha sido por ele criada para lhe obedecer, visto que, além de seu marido, era também seu Deus.

Contrariada, mas impotente para obrigar o esposo a desistir do seu intento, limitou-se a deixar ir a filha com o pai, enquanto ela ficou a chorar amargamente.
Logo que chegaram ao local escolhido para a caçada o Nzambi instantaneamente, construiu uma palhota, na qual instalou uma só cama.

Ao ver um único leito, a filha do Nzambi recusou-se a dormir com seu pai e saiu, a chorar, da cabana.

Ao ver a recusa da filha e não podendo convencê-la doutra forma, disse-lhe que, se não viesse imediatamente para junto dele, seria devorada pelas feras que infestavam a floresta.

Transida de medo, pelo que acabava de ouvir, Kalunga entrou novamente na cabana, deitou-se junto de seu pai e com ele dormiu não só naquela noite mas durante todo o tempo que durou a caçada.

Finda esta, regressaram a casa e, a Ná Kalunga, tal como tinha previsto, verificou que a filha estava grávida do próprio pai. Enraivecida pelo ciúme e pelo desgosto, no meio das maiores blasfémias, enforcou-se numa árvore, perante os olhares atónitos da filha e do marido que nada fizeram para evitar tal suicídio.

Desgostoso pela atitude da mulher, que não quis compreender os seus desígnios para povoar o Mundo que ele tinha criado, mostrando ser indigna de continuar a ser esposa daquele que lhe tinha dado o ser, em vez de lhe dar vida, novamente, amaldiçoou-a e transformou-a num espírito maligno, a que deu o nome de Mujimo.
A partir dessa altura, o Nzambi passou então a viver maritalmente com sua filha Kalunga, a qual, depois da morte da mãe passou a chamar-se também Ndala Karitanga e a ser a segunda divindade.

Algum tempo depois da morte de sua mãe, durante um sonho, teve uma visão que a deixou apavorada. Viu a mãe com a cabeça apoiada nas mãos, a olhá-la com rancor e a insultá-la, mordida pelo ciúme que ainda a devorava, enquanto ela, envergonhada, lhe pedia desculpa e lhe dizia que de nada era culpada, posto que, seu pai a tal a tinha obrigado. No meio desta aflição acordou e contou ao pai o seu pesadelo. Este sossegou-a, dizendo-lhe que nada receasse daquela que tinha sido sua mãe e que agora era espírito mau, pois que ela nenhum mal lhe poderia fazer, mas apenas lhe pedia comida. Portanto, disse ele, vamos dar-lha.

Levantaram-se ambos e ele fez um pequenino montão de terra, junto da porta da casa, simulando uma sepultura. Disse, então, à filha, que fosse buscar carne e outra comida e a pusesse sobre aquela sepultura, proferindo, ao mesmo tempo, as seguintes palavras:

Mama ngu n'ezanga ua-ku-kurila.
Halapuila kanda uiza kuri yami nawa;
ny ngu-na-ku mono nawa ngu n'eza ny ku ku cheha

(minha mãe acabo de vir chorar-te; agora, não voltes ter comigo outra vez (porque), se volto a ver-te, venho matar-te).

Chegado que foi o tempo, Kalunga deu à luz um filho ao qual, seu pai-avô deu, também, o nome de Ndala Karitanga, passando este a ser a terceira divindade.
Logo que o seu filho-neto cresceu e atingiu a adolescência, o Nzambi ordenou-lhe que casasse com sua mãe Kalunga, para que esta concebesse dele muitos filhos, de ambos os sexos, a fim de povoarem a Terra e dominarem todos os animais.
Cumprindo as ordens do Nzambi, sua filha e seu filho-neto casaram e tiveram um filho e uma filha. Quando estes chegaram à maioridade, o Nzambi ordenou, então, que o primeiro casasse com sua mãe e a filha casasse com o pai, dizendo que já se não justificava a primeira união que ele tinha ordenado, informando-os ainda, que, depois daquelas uniões, as seguintes se fizessem só entre primos.

Por fim, depois de lhes ter ensinado tudo o que deveriam fazer, para que a sua descendência crescesse e se multiplicasse, para que lutasse contra as doenças e os feitiços que um dos seus descendentes, do sexo feminino, viria a possuir, porque ele lhos legaria, o Nzambi despediu-se de todos.

Chamando, depois, o seu cão, que sempre o acompanhava, dirigiu-se para a tchana tcha Mweu(planalto do Mweu) e dali subiu para o espaço, levando consigo o cão.
Naquela altura, as rochas estavam moles, por terem sido formadas há pouco tempo. Ainda hoje se podem observar as pegadas esculpidas, numa rocha ali existente, especialmente do pé direito do Nzambi, assim como da pata dianteira do seu cão. Estas pegadas existem também em diversas outras rochas por toda a África.

Foi, pois, dali, que o Nzambi subiu à tchihunda tcha Nzambi (aldeia de Deus), ou céu como nós lhe chamamos(os europeous), onde se conserva, através dos séculos, para recompensar os bons e castigar os maus.

À pergunta que fizemos, a diferentes tutchokwe, como é e quem foi que criou o Nzambi, eles responderam, apenas, que, sendo ele Ndala Karitanga, se deve ter criado a si mesmo e que tudo o mais é mistério que jamais alguém conseguiu ou conseguirá desvendar.

A lenda que acabámos de expor foi-nos contada no nosso acampamento do Luaco, conselho de Cambulo, em 1945, por dois velhos tutchokwe, trabalhadores da equipe de prospecção que dirigíamos. Esses homens eram naturais da região do Sombo, concelho de Camissombo. Um chamava-se Tchinjamba Sã Fuca e o outro Sã Hongo, ambos já falecidos. O primeiro morreu no Luaco, reformado da DIAMANG, o segundo faleceu, na sua terra natal, com cerca de 90 anos, em 1964.

Em 1962, ouvimos a mesma lenda da boca do Mu'atchissengue José Sã Tambi( foi deputado do MPLA na II Republica), regedor de Saurimo e chefe dos tutchokwe da Lunda. Vemos igualmente respectivamente, outros nossos informadores, os chefes lundas Ritende e Mwatchyanvwa.

NOTAS

O Nzambi é representado por uma pequena estatueta de madeira a qual simboliza um homem com os braços e pernas abertos e ligados a um retângulo. O Nzambi é representado no Ngombo ya Tchisuka por uma braçadeira de canhangulo em forma de cruz ou por uma cruz feita de madeira ou de Kajana.

Ao contrário de nós, em que os filhos tomam os nomes dos progenitores, entre os nativos são os pais que tomam o nome da filha ou filho primogénito. Assim, por exemplo, logo que um casal tem o primeiro filho, os pais acrescentam, aos seus primitivos nomes, o nome do filho, precedido dos títulos de Sã ou Xá, para o pai e Ná para a mãe. Desta forma, chamando-se a filha Kalunga, os pais chamar-se-ão. respectivamente, Sã ou Xá Kalunga e Ná Kalunga. Kalunga, além de Deus supremo, designa tudo aquilo que é onipotente, imenso, infinito ou horroroso.
Designa ventre mas, neste caso, significa o espírito da primeira mãe que existiu na Terra.

Segundo as indicações dos nativos a tchana tcha Mweu (planalto do Mweu) situar-se-ia na região dos grandes lagos, possivelmente no Kilimanjaro, pois dizem que este monte está perto do Kalunga ka meya (mar, lago), e está sempre gelado. Também dão o nome de tchana tcha Mweu a uma planície situada entre os rios Luembe e Cassai, aproximadamente a 11º 10' de latitude sul e a 20º 20' de longitude este, junto da nascente do ribeiro Mbanze (afluente do rio Chiumbe). Dão-lhe este nome por estar perto do Mweu (estrangulamento) do rio Cassai. Neste ponto o rio tem apenas cerca de quatro metros de largura. Mbanze representa a separação entre o Tchinguri e a Lueji depois do erro desta na corte do Imperador Muatianvua.

Segundo a tradição tchokwe foi junto à nascente do ribeiro Mbanze que se estabeleceram, primeiramente. os chefes Ndumba-ua-Tembo, Muambumba, Muatchissengue e outros. quando fugiram à soberania do Mwatchyanvwa. Foi naquele mesmo ponto que, mais, tarde, se reuniram. novamente, os três chefes e ali planearam a separação e distribuição de terras que, cada um deveria ocupar. Convém notar que a crença num único Nzambi (Deus) é muito viva entre Tutchokwe e Lundas, independentemente das influência das missões cristãs da Europa. Estas, por sua vez tendo encontrado uma tal crença, aproveitaram-na e apoiaram-se nela, o que facilitou imenso a difusão da religião católica entre estes povos.



* tata Katuvanjesi – Walmir Damasceno, é jornalista, Nganga diama diá Inzo Ia Tumbansi Tua Nzambi Ngana Kavungu, pesquisador e estudioso de culturas tradicionais e crenças afro bantu.