domingo, 15 de novembro de 2015

O REVISIONISMO HISTÓRICO DE JOSÉ EDUARDO DOS SANTOS

O REVISIONISMO HISTÓRICO DE JOSÉ EDUARDO DOS SANTOS

Rafael Marques de Morais, 14 de Novembro de 2015


Na sua mensagem à nação “por ocasião do 40.º Aniversário da Independência Nacional”, o presidente José Eduardo dos Santos fez uma incursão aos primórdios das relações entre Portugal e o Reino do Congo (hoje, parte de Angola). A dissertação de história do presidente é enganosa.


“Os representantes do Rei de Portugal chegaram ao Reino do Congo em 1482 e, em sucessivas missões, estabeleceram relações de amizade e cooperação que se desenvolveram normalmente e com benefícios recíprocos para as duas partes durante cerca de cem anos”, leu, em tom professoral, José Eduardo dos Santos.


Na verdade, as relações de amizade e cooperação entre Portugal e o Reino do Congo não se desenvolveram normalmente e não duraram cem anos, com benefícios recíprocos, como o presidente tentou fazer crer.


O navegador português Diogo Cão chegou à boca do Rio Congo em 1482. Mas foi em 1491 que a primeira expedição de padres e emissários portugueses se estabeleceu permanentemente na corte do rei do Congo, o ManiKongo. Essa data é considerada pelos historiadores como o marco do início dos contactos regulares entre europeus e uma nação negra africana.


Logo à chegada, para além de pregarem a palavra do Evangelho, os portugueses dedicaram-se imediatamente a promover a venda de armas de fogo, que conferia ao ManiKongo larga vantagem na supressão de rebeliões internas. Já nessa altura, como refere o historiador John Thornton, o ManiKongo João I Nzinga a Nkuwu, empregava mercenários portugueses, que o ajudavam a conquistar os territórios que resistiam à sua autoridade ou a desafiavam. Em 1509, havia já uma expedição militar portuguesa envolvida em inúmeras campanhas militares.


Com o poderio militar estabelecido junto da monarquia do Congo, o envolvimento dos portugueses no tráfico de escravos ganhou logo primazia nas suas relações com os nativos.


“Homens enviados de Lisboa, para serem pedreiros e professores em Mbanza Congo, depressa passaram a fazer muito mais dinheiro encaminhando filas de africanos acorrentados à costa e vendendo-os aos capitães dos navios negreiros”, escreve o reputado historiador Adam Hochschild no seu livro King Leopold’s Ghosts [“Os Fantasmas do Rei Leopoldo”].


“A luxúria pelos lucros da escravatura envolveu alguns dos padres, que abandonaram o catecismo, amantizaram mulheres negras, mantiveram escravos, e venderam à escravatura os seus estudantes e convertidos”, prossegue Hochschild.


Regressemos ao discurso de José Eduardo dos Santos. Na sua lição de história, o presidente refere que “entretanto, Portugal modificou unilateralmente a sua política de cooperação bilateral e iniciou pela força a ocupação do território do Rei do Congo e outros soberanos vizinhos”.


Ora, em 1526, 44 anos após os portugueses terem aportado no Congo, o ManiKongo Nzinga Mbemba Affonso I escreveu ao rei João III o seguinte:  


“Todos os dias, os negociantes raptam o nosso povo – filhos desta terra, filhos dos nossos nobres e vassalos e mesmo membros da nossa própria família [do ManiKongo]… A disseminação desta corrupção e depravação é de tal ordem que a nossa terra está inteiramente despovoada... Neste reino, precisamos apenas de padres e professores, e não de mercadorias, a menos que seja vinho e farinha para as missas... É nosso desejo que este reino não seja um lugar para o tráfico ou transporte de escravos.”


A resposta do rei João III de Portugal ao seu homólogo, demonstra que não havia “relações de amizade”, de “cooperação bilateral” e de “benefícios recíprocos”:


“Diz-me... que não quer o tráfico de escravos nos seus domínios, porque este comércio está a despovoar o seu território... Os portugueses [presentes no Congo] dizem-me, pelo contrário, quão vasto é o Congo, e como é tão densamente povoado que, ao que parece, nenhum escravo tenha saído dali.”


Segundo Hochschild, no mesmo ano, o ManiKongo escreveu outras cartas ao seu homólogo, e numa das quais reconhece as fraquezas dos seus súbditos diante das bugigangas trazidas pelos portugueses para trocar por escravos: 


“Esses bens exercem grande atracção sobre as pessoas simples e ignorantes, que as leva a acreditar nas mesmas e a esquecerem a sua fé em Deus... Meu Senhor, uma ganância monstruosa leva os nossos súbditos, mesmo os cristãos, a capturarem membros das suas próprias famílias e da nossa, para fazerem comércio, vendendo-os como cativos”, lamenta o rei do Congo.


Há, de resto, muito mais provas da falsa teoria de José Eduardo dos Santos acerca dos primeiros cem anos de amizade, cooperação bilateral e benefícios recíprocos entre Portugal e o Reino do Congo.   


Destaca-se a descrição de Adam Hochschild relativamente ao cúmulo do desespero do ManiKongo Nzinga Mbemba Affonso I, em 1539, 48 anos após os portugueses se terem estabelecido na corte de Mbanza Congo. O rei enviara membros da sua família para receberem educação religiosa em Portugal, e dez dos seus jovens sobrinhos, netos e outros parentes haviam sido retirados da delegação e enviados para o Brasil como escravos. A oposição ao tráfico de escravos manifestada pelo ManiKongo levou a que um grupo de oito mercadores portugueses atentasse contra a sua vida em 1540. Sobreviveu ao tiro, que lhe furou apenas a vestimenta real.


A interpretação enganosa da história por parte de José Eduardo dos Santos pode ser explicada por uma outra parte do discurso proferido a 11 de Novembro último, quando menciona as relações contemporâneas entre Portugal e Angola:


“Em 1978, Agostinho Neto, presidente da República [Popular] de Angola, e Ramalho Eanes, presidente da República Portuguesa, assinaram em Bissau, capital da Guiné, um acordo sobre as relações diplomáticas entre os dois países, na base do respeito mútuo e da soberania, restabelecendo-se também os laços de amizade e cooperação entre o Rei de Portugal e o Rei do Congo em 1482 e que foram ignorados cem anos depois, quando se escolheu o caminho errado.”


Através desta gritante falsificação da história, o presidente pretende fazer crer que o único lado certo da história em Angola é o do MPLA e dos seus dirigentes. José Eduardo dos Santos branqueia a imagem de Portugal, nos primeiros cem anos da sua intervenção em Angola, para poder estabelecer uma narrativa paralela de dois lados certos da história, de amizade e cooperação, ligando assim a liderança do MPLA a um benigno rei do Congo, e de ambos a Portugal. Desse modo, os quinhentos anos de colonialismo português são resumidos por JES como tendo estado do lado certo em dois momentos apenas: junto do rei do Congo, e na relação mutuamente vantajosa que estabeleceu com Agostinho Neto e, pela mesma via, com o seu sucessor, José Eduardo dos Santos.


Ironicamente, é com base nesta mentalidade revisionista que o MPLA tem perpetuado as piores práticas do colonialismo português em Angola. Ao invés de adoptar a postura do ManiKongo Nzinga Nvemba (com o qual procura comparar-se), que acabou por se opor à exploração do seu povo, arriscando a sua própria vida, José Eduardo dos Santos assume-se como o representante dos exploradores do seu próprio povo.


Ficará bem ao presidente resumir-se ao branqueamento dos fundos públicos saqueados pelo seu regime e investidos em Portugal, assim como a história do próprio MPLA. Ficará melhor ainda ao presidente a sua contínua obsessão em inventar golpes de Estado contra si próprio e teorias de conspiração que envolvem encontros de miúdos pé-descalços com o alto comando da NATO, planeando em conjunto a invasão de Angola.


Ainda assim, sobre a história dos nossos antepassados, que já está documentada, queira José Eduardo dos Santos poupar-se ao ridículo e poupar-nos ao seu pedantismo.