O REVISIONISMO HISTÓRICO DE JOSÉ EDUARDO DOS
SANTOS
Rafael Marques de Morais, 14 de
Novembro de 2015
Na sua mensagem à nação “por
ocasião do 40.º Aniversário da Independência Nacional”, o presidente José
Eduardo dos Santos fez uma incursão aos primórdios das relações entre Portugal
e o Reino do Congo (hoje, parte de Angola). A dissertação de história do
presidente é enganosa.
“Os representantes do Rei de
Portugal chegaram ao Reino do Congo em 1482 e, em sucessivas missões,
estabeleceram relações de amizade e cooperação que se desenvolveram normalmente
e com benefícios recíprocos para as duas partes durante cerca de cem anos”,
leu, em tom professoral, José Eduardo dos Santos.
Na verdade, as relações de
amizade e cooperação entre Portugal e o Reino do Congo não se desenvolveram
normalmente e não duraram cem anos, com benefícios recíprocos, como o
presidente tentou fazer crer.
O navegador português Diogo Cão
chegou à boca do Rio Congo em 1482. Mas foi em 1491 que a primeira expedição de
padres e emissários portugueses se estabeleceu permanentemente na corte do rei
do Congo, o ManiKongo. Essa data é considerada pelos historiadores como o marco
do início dos contactos regulares entre europeus e uma nação negra africana.
Logo à chegada, para além de
pregarem a palavra do Evangelho, os portugueses dedicaram-se imediatamente a
promover a venda de armas de fogo, que conferia ao ManiKongo larga vantagem na
supressão de rebeliões internas. Já nessa altura, como refere o historiador
John Thornton, o ManiKongo João I Nzinga a Nkuwu, empregava mercenários
portugueses, que o ajudavam a conquistar os territórios que resistiam à sua
autoridade ou a desafiavam. Em 1509, havia já uma expedição militar portuguesa
envolvida em inúmeras campanhas militares.
Com o poderio militar
estabelecido junto da monarquia do Congo, o envolvimento dos portugueses no
tráfico de escravos ganhou logo primazia nas suas relações com os nativos.
“Homens enviados de Lisboa, para
serem pedreiros e professores em Mbanza Congo, depressa passaram a fazer muito
mais dinheiro encaminhando filas de africanos acorrentados à costa e
vendendo-os aos capitães dos navios negreiros”, escreve o reputado historiador
Adam Hochschild no seu livro King Leopold’s Ghosts [“Os Fantasmas do
Rei Leopoldo”].
“A luxúria pelos lucros da
escravatura envolveu alguns dos padres, que abandonaram o catecismo,
amantizaram mulheres negras, mantiveram escravos, e venderam à escravatura os
seus estudantes e convertidos”, prossegue Hochschild.
Regressemos ao discurso de José
Eduardo dos Santos. Na sua lição de história, o presidente refere que
“entretanto, Portugal modificou unilateralmente a sua política de cooperação
bilateral e iniciou pela força a ocupação do território do Rei do Congo e
outros soberanos vizinhos”.
Ora, em 1526, 44 anos após os
portugueses terem aportado no Congo, o ManiKongo Nzinga Mbemba Affonso I
escreveu ao rei João III o seguinte:
“Todos os dias, os negociantes
raptam o nosso povo – filhos desta terra, filhos dos nossos nobres e vassalos e
mesmo membros da nossa própria família [do ManiKongo]… A disseminação desta
corrupção e depravação é de tal ordem que a nossa terra está inteiramente
despovoada... Neste reino, precisamos apenas de padres e professores, e não de
mercadorias, a menos que seja vinho e farinha para as missas... É nosso desejo
que este reino não seja um lugar para o tráfico ou transporte de escravos.”
A resposta do rei João III de
Portugal ao seu homólogo, demonstra que não havia “relações de amizade”, de
“cooperação bilateral” e de “benefícios recíprocos”:
“Diz-me... que não quer o tráfico
de escravos nos seus domínios, porque este comércio está a despovoar o seu
território... Os portugueses [presentes no Congo] dizem-me, pelo contrário,
quão vasto é o Congo, e como é tão densamente povoado que, ao que parece,
nenhum escravo tenha saído dali.”
Segundo Hochschild, no mesmo ano,
o ManiKongo escreveu outras cartas ao seu homólogo, e numa das quais reconhece
as fraquezas dos seus súbditos diante das bugigangas trazidas pelos portugueses
para trocar por escravos:
“Esses bens exercem grande
atracção sobre as pessoas simples e ignorantes, que as leva a acreditar nas
mesmas e a esquecerem a sua fé em Deus... Meu Senhor, uma ganância monstruosa
leva os nossos súbditos, mesmo os cristãos, a capturarem membros das suas
próprias famílias e da nossa, para fazerem comércio, vendendo-os como cativos”,
lamenta o rei do Congo.
Há, de resto, muito mais provas
da falsa teoria de José Eduardo dos Santos acerca dos primeiros cem anos de
amizade, cooperação bilateral e benefícios recíprocos entre Portugal e o Reino
do Congo.
Destaca-se a descrição de Adam
Hochschild relativamente ao cúmulo do desespero do ManiKongo Nzinga Mbemba
Affonso I, em 1539, 48 anos após os portugueses se terem estabelecido na corte
de Mbanza Congo. O rei enviara membros da sua família para receberem educação
religiosa em Portugal, e dez dos seus jovens sobrinhos, netos e outros parentes
haviam sido retirados da delegação e enviados para o Brasil como escravos. A
oposição ao tráfico de escravos manifestada pelo ManiKongo levou a que um grupo
de oito mercadores portugueses atentasse contra a sua vida em 1540. Sobreviveu
ao tiro, que lhe furou apenas a vestimenta real.
A interpretação enganosa da
história por parte de José Eduardo dos Santos pode ser explicada por uma outra
parte do discurso proferido a 11 de Novembro último, quando menciona as
relações contemporâneas entre Portugal e Angola:
“Em 1978, Agostinho Neto,
presidente da República [Popular] de Angola, e Ramalho Eanes, presidente da
República Portuguesa, assinaram em Bissau, capital da Guiné, um acordo sobre as
relações diplomáticas entre os dois países, na base do respeito mútuo e da
soberania, restabelecendo-se também os laços de amizade e cooperação entre o
Rei de Portugal e o Rei do Congo em 1482 e que foram ignorados cem anos depois,
quando se escolheu o caminho errado.”
Através desta gritante
falsificação da história, o presidente pretende fazer crer que o único lado
certo da história em Angola é o do MPLA e dos seus dirigentes. José Eduardo dos
Santos branqueia a imagem de Portugal, nos primeiros cem anos da sua
intervenção em Angola, para poder estabelecer uma narrativa paralela de dois
lados certos da história, de amizade e cooperação, ligando assim a liderança do
MPLA a um benigno rei do Congo, e de ambos a Portugal. Desse modo, os
quinhentos anos de colonialismo português são resumidos por JES como tendo
estado do lado certo em dois momentos apenas: junto do rei do Congo, e na
relação mutuamente vantajosa que estabeleceu com Agostinho Neto e, pela mesma
via, com o seu sucessor, José Eduardo dos Santos.
Ironicamente, é com base nesta
mentalidade revisionista que o MPLA tem perpetuado as piores práticas do
colonialismo português em Angola. Ao invés de adoptar a postura do ManiKongo
Nzinga Nvemba (com o qual procura comparar-se), que acabou por se opor à
exploração do seu povo, arriscando a sua própria vida, José Eduardo dos Santos
assume-se como o representante dos exploradores do seu próprio povo.
Ficará bem ao presidente
resumir-se ao branqueamento dos fundos públicos saqueados pelo seu regime e
investidos em Portugal, assim como a história do próprio MPLA. Ficará melhor
ainda ao presidente a sua contínua obsessão em inventar golpes de Estado contra
si próprio e teorias de conspiração que envolvem encontros de miúdos pé-descalços
com o alto comando da NATO, planeando em conjunto a invasão de Angola.
Ainda assim, sobre a história dos
nossos antepassados, que já está documentada, queira José Eduardo dos Santos
poupar-se ao ridículo e poupar-nos ao seu pedantismo.