O TÉTRICO NEGÓCIO DA MORGUE DO
HOSPITAL REGIONAL DE CAFUNFO
“Os doentes não pagam. Só os mortos, para serem conservados por um
ou dois dias na morgue”, explica um responsável do Hospital Regional de
Cafunfo, município do Cuango, província da Lunda-Norte.
Por Rafael Marques de Morais (*)
Apesar de ser a zona mais rica de Angola, em
termos de exploração aluvial de diamantes, a extrema pobreza na região atingiu
também a administração local, que se vê obrigada a cobrar dinheiro pela
conservação de cadáveres na morgue do hospital público.
Zinha de Castro, de 40 anos, faleceu na
madrugada de 4 de Maio. Justino Pedro, o seu ex-marido, informa o Maka Angola
de que ela morreu de febre-amarela. “Tivemos de comprar um tambor de gasóleo
[200 litros] por 35 mil kwanzas [US $212 ao câmbio oficial], para conservar o
corpo dela na morgue do hospital. Entregámos ao chefe do património, Simão
Jonas”, relata Justino Pedro, afirmando ainda que a epidemia de febre-amarela,
em Cafunfo continua a espalhar-se pelas comunidades.
“Por dia, estamos a enterrar mais de dez
pessoas. Por falta de vacinas, de uma seringa ou de uma aspirina no hospital,
as pessoas estão a usar folhas de mamoeiro, mangueira, abacateiro ou
laranjeira, ou outras folhas para tentarem tratar a doença”, lamenta.
O entrevistado refere ainda que foi
interrompida a rotina dos cidadãos em recorrerem à vizinha República
Democrática do Congo para tratamento. “Os angolanos estão a ser impedidos de
entrar na RDC, por causa da epidemia de febre-amarela. Eles não querem que
espalhemos lá a doença.”
Fonte hospitalar que prefere o anonimato
revela “que os médicos negam que haja uma epidemia de febre-amarela aqui. Mas
nós verificamos todos os sintomas a olho nu e as muitas mortes diárias que tem
causado”.
A mesma pessoa revela: “Não fazemos
diagnósticos no hospital, porque não temos sequer seringas, luvas, algodão. Já
nem sequer falamos em medicamentos.” O hospital dispõe apenas de um técnico de
laboratório.
Aos 16 anos de idade, Cecília Matias faleceu,
em Cafunfo, vítima de febre-amarela. “Comprámos dois tambores [de 200 litros
cada] de gasóleo nas bombas, por 64 mil kwanzas [US $387 ao câmbio oficial],
para conservar o corpo da Cecília durante dois dias na morgue”, explica
Madalena Matias, uma tia da vítima. “Fomos informados pela direcção do hospital
de que não há combustível. Um dos responsáveis do hospital fez-nos a cobrança
directamente e instruiu o mecânico para receber os dois tambores de combustível
como pagamento, para abastecer o gerador.”
Madalena Matias prossegue: “Tivemos de pagar
mais 10 mil kwanzas ao segurança da morgue para garantir que a gaveta está a
funcionar bem. As outras [cinco gavetas] não funcionam em condições e os corpos
saem de lá a cheirar.”
Em média, de acordo com fontes hospitalares,
a morgue recebe diariamente entre três a cinco cadáveres. Todas as famílias têm
de pagar, ou em combustível, ou o valor monetário equivalente a 200 litros de
combustível.
Eduardo Muatxivumbi pagou 30 mil kwanzas pela
conservação, durante apenas uma noite, do corpo do sobrinho André Silva, de 21
anos. “Eu paguei na secretaria da direcção do hospital, onde se fazem os
pagamentos. Não passam factura. Paga-se e a seguir coloca-se o corpo na
morgue”, afirma o tio.
Eduardo Muatxivumbi denuncia também a
cobrança oficial de 2000 kwanzas para a emissão de uma certidão de óbito.
“Ficámos frustrados com tantas cobranças, e já não pagámos pela certidão de
óbito. Enterrámos o André Silva mesmo assim”, lamenta.
E para as famílias sem recursos? “Quem não
tem dinheiro, tem de enterrar logo o corpo. Sem pagamento não há lugar na
morgue”, adianta o activista local Salvador Fragoso.
O responsável, que prefere não ser
identificado pelo nome, confirma: “É verdade. Por falta de energia na
localidade, o governo deu-nos um gerador, mas não fornece combustível. Por
isso, pedimos às famílias para comparticiparem na conservação dos cadáveres dos
seus entes queridos.”..
Uma vez que o combustível abastece o hospital
no seu todo, e ainda as residências da administração local e outros
beneficiários vizinhos, o responsável justifica as razões para a discriminação
entre mortos e pacientes.
“O gerador só funciona à noite, das 18h00 às
23h00, e, depois, para a remoção dos corpos, entre as 4h00 e as 8h00. Durante o
dia usamos a luz natural para tratar os pacientes. Os médicos têm arriscado
operações mesmo sem energia”, revela a fonte hospitalar.
O Hospital Regional de Cafunfo dispõe de
cinco médicos norte-coreanos e um angolano, e dá assistência aos municípios do
Cuango, Caungula, Xá Muteba, Lubalo, Capenda Camulemba e Cuilo. Oficialmente, o
hospital atende uma população de mais de 324 mil habitantes, correspondente ao
total dos seis municípios. Estes números indicam a existência de um médico por
cada 54 mil habitantes.
De forma peremptória, os funcionários
hospitalares entrevistados corroboram a ideia de que “o hospital é regional de
nome apenas”. Como agravante, referem que os funcionários em regime de contrato
têm os salários em atraso desde Fevereiro, e que os funcionários efectivos não
receberam o salário de Abril..
Contactada por Maka Angola, Angélica Kaumba
Sassão, a administradora municipal do Cuango, manifesta-se surpreendida diante
da informação de que são exigidos pagamentos aos familiares dos mortos para uso
da morgue. “Eu não tenho conhecimento. Deve ser um trabalhador que o faz sem o
conhecimento da direcção”, remata.
Quanto à denúncia dos familiares de que os
pagamentos são feitos na secretaria da direcção do hospital, Angélica Kaumba
Sassão afirma: “Não tenho essa informação. Há 15 dias, enviámos combustível
para abastecer o gerador. Para mim é uma surpresa.”
A administradora garante que irá questionar o
director do hospital acerca dos referidos pagamentos.
Todavia, o mesmo gerador também tem sido
usado para fornecer energia eléctrica à vizinhança, nomeadamente às residências
da administração municipal, do secretário do MPLA, comandante da Polícia
Nacional, procurador, entre outros responsáveis locais. De igual modo,
providencia energia à Escola Deolinda Rodrigues.
Há qualquer coisa aqui que não está a bater
certo.
(*) Maka
Angola