O MEMORANDUM DE ENDENTIMENTO
DE CABINDA APRENDER COM OS ERROS DOS OUTROS
O mês de
Agosto assinala os acordos de Helvoirt (Holanda) que resultaram na fusão da
FLEC-FAC de Nzita Tiago e da FLEC-Renovada de António Bento Bembe e o Memorando
de Namibe para a Paz na Província de Cabinda, assinado por Bento e o Governo de
Angola.
Raul Tati*
Neste ano
2015, o dia 1 de Agosto não foi assinalado curiosamente com a comédia
espampanante a que o nosso compatriota Bento Bembe e os seus correligionários
nos habituaram a assistir pelas artérias da cidade de Tchowa, nestes últimos
anos. Não é da minha conta, mas o silêncio sobre a efeméride não me passou
despercebido. E aproveitando o ensejo, deixo aqui algumas reflexões sobre o
Memorando de (des)entendimento.
Para uma
análise completa do acordo devemos incluir: 1) os antecedentes do acordo; 2) a
génese e o processo negocial; 3) o conteúdo do acordo e sua implementação; 4)
resultados. Tendo em conta a natureza desta comunicação e o tempo que nos está
reservado não vai ser possível fazer uma análise profunda destes pontos. Vou
aqui avançar apenas umas pinceladas sobre o assunto.
1) Antecedentes
do Acordo: o grande acontecimento
político cabindês dos últimos dez anos foi a reunião de concertação de Helvoirt
(Holanda) de 23 a 29 de Agosto de 2004 (também conhecida como Conferência de
Emaús) entre diversos actores políticos e religiosos de Cabinda, nomeadamente a
FLEC-FAC de Nzita Henriques Tiago, a FLEC-Renovada, de António Bento Bembe, a
Associação Cívica de Cabinda – Mpalabanda e a Igreja. Uma vez que o Governo de
Angola reiteradas vezes alegou falta de um interlocutor válido para negociar o
estatuto político de Cabinda, o acto fundamental de Helvoirt foi a fusão dos
dois movimentos político-militares em FLEC-Unificada no dia 24 de Agosto de
2004 e a criação de uma plataforma político-diplomática de concertação interna
no dia 28 de Agosto, com a designação, por mim sugerida, de Fórum Cabindês para
o Diálogo (FCD).
A
Conferência ´´entregou´´ a presidência da FLEC ao Nzita Tiago, sendo António
Bento Bembe o Secretário-Geral. Este, entretanto, também indigitado para
presidência do FCD. Embora o Governo de Angola tenha recebido por canais
apropriados os resultados da conferência, – aliás tinha infiltrado lá uma
toupeira na pessoa do mui ilustre espião, o senhor Guálter dos Remédios, hoje
premiado com o cargo de Secretário de Estado dos Petróleos – não reagiu durante
um ano, até que Bento Bembe doi detido pela INTERPOL nos umbrais do Palácio de
justiça de Haia em Junho de 2005, tendo enfrentado a seguir um pedido de
extradição para os EUA, assinado pela Secretária de Estado americana, a senhora
Condoleeza Rice.
2) A génese e o processo negocial: O
cativeiro de António Bento Bembe abriu as portas para que Luanda quebrasse o
enguiço através dos Serviços de Inteligência Externa e do Ministério das
Relações Exteriores. Consta que o General Garcia Miala e George Chicoti, então
Vice-Ministro do MIREX, visitaram Bento e privaram com ele na Holanda. O então
Ministro João Bernardo de Miranda terá despachado uma carta ao Ministério dos
Negócios estrangeiros dos Paises Baixos para solicitar a soltura de António
Bento Bembe, de cujo teor citamos este trecho:
«Tendo em
consideração que Angola se encontra neste momento numa fase de consolidação do
processo de paz e de ampla reconciliação nacional, todos os cidadãos que
cometeram crimes de natureza política no âmbito do conflito interno, foram
amnistiados, sendo esta posição do nosso Governo caucionada por resoluções da
Organização das Nações Unidas e da Unidade Africana. Assim ao abrigo do
ordenamento jurídico actual de Angola, as acusações imputadas ao cidadão
angolano não são passíveis de procedimento criminal por se enquadrarem no
âmbito do conflito interno que terminou há (3) três anos. Em conformidade ao
que acima me referi, gostaria apelar a Vossa Excelência no sentido da
libertação definitiva do cidadão angolano». (Datada de 7 Nov 2005).
É neste
contexto que Bento Bembe desaparece ´´milagrosamente´´ da Holanda, embora tenha
sido ilibado pela justiça holandesa. A partir deste momento, Bento monta o seu
quartel-general em Brazaville sob protecção do Governo congolês, mas já com os
dois pés na argola dos Serviços de Inteligência Externa de Angola e da Casa
Militar do PR. Houve reuniões em Brazzaville e em Ponta-Negra para o
alargamento do FCD às demais tendências políticas cabindesas.
Numa das
reuniões de Ponta-Negra, moderada por mim, foi concedida ao nosso compatriota
Bento Bembe cerca de três horas para explicar do seu misterioso desaparecimento
da Holanda. Disse tudo o que quis dizer menos o que nós queríamos ouvir. Mas o
seu comportamento começava já a revelar aquilo que escondia e não queria
partilhar com os companheiros. Avultaram as suspeitas de traição que pouco a
pouco se foram sedimentando até que os membros do FCD, reunidos em Libreville,
decidiram exonerar o Bento da presidência do FCD, pois este recusou-se a ir
participar da reunião alegando questões de segurança. Há um detalhe ainda que
devo aqui realçar: depois da detenção do nosso compatriota, foi decidida a
substituição do Bento da presidência do FCD, e fui sondado interna e
externamente para substitui-lo, mas eu declinei o convite defendendo que Bento
deveria permanecer no cargo porquanto a extradição para os EUA era inverosímil.
Entretanto, Nzita Tiago criou um colégio presidencial para o FCD com três
membros, onde constava o Engenheiro Agostinho Chicaia, o Senhor Antoine Bemba
Nzita e eu próprio. Declinei igualmente esta nomeação e aconselhei o Chicaia a
fazer o mesmo.
Quanto ao
processo negocial, gostava de dizer apenas que nunca houve negociação no seu
verdadeiro sentido. Pelos seguintes motivos: a) o FCD não tinha competências
para negociar, mas apenas para congregar as várias sensibilidades cabindesas;
b) na Conferência de Helvoirt decidiu-se que depois dos contactos prévios e
exploratórios com o Governo de Angola seria criada uma equipa negocial
representativa; c) O processo foi orquestrado pela Casa Militar do PR e só na
sua fase conclusiva foi envolvido formalmente o Governo na pessoa do então
Ministro da Administração do Território, Dr. Virgílio Fontes Pereira; d) O
nosso compatriota António Bento Bembe estava a agir como refém do regime
angolano e sob as suas ordens, pelo que não estava em condições de negociar de
igual para igual; Os parceiros políticos e cívicos do FCD e demais figuras
representativas cabindenses no interior e na diáspora ficaram de fora; e) Para
um conflito tão complexo, tendo em conta as reivindicações em jogo, foram
necessárias apenas três dias para encontrar um acordo (13, 14 e 15 de Julho de
2006).
3) O conteúdo do acordo e sua implementação: podemos
aqui dizer previamente que, pelas razões acima aduzidas, trata-se de um acordo
pobre, vazio e mau. Está eivado de má fé (pecando contra o principio de ´´bona
fide´´) e tem apenas a pretensão de acalmar o fulgor das pretensões cisionistas
no Enclave de Cabinda. O famoso Estatuto Especial para Cabinda (um dos anexos
do Memorando) foi publicado por decreto-Lei Nº1/07 de 2 Jan no Diário da
Republica (Iª série, Nº 1, Terça-feira 2 Jan 2007). Quem lê o texto ficará
abismado pelas discrepâncias entre o que diz o texto e a realidade em Cabinda,
no momento em que o calendário nos vai colocando nos umbrais do décimo
aniversário de tão triste defunto, pois não passou de um nado-morto. Como
cidadão de Cabinda não sei o que significa Estatuto Especial na minha vida e na
vida das populações autóctones.
A única
coisa que sei é que os antigos directores e delegados provinciais passaram a
chamar-se Secretários Provinciais. Outro aspecto do acordo, talvez o mais
vistoso e o único que está sendo cumprido como uma espécie de ´´pacto
satânico´´ é o da acomodação de indivíduos que aderiram ao Memorando em cargos
governativos (Ministro sem Pasta, Vice-Ministros, Secretários de Estado,
Vice-Governador – o que lá está já ficou vitalício! – e em empresas públicas
como a Sonangol, a RNA-Cabinda, ENANA, e a integração de antigos militares da
FLEC nas FAA e na Policia nacional com a respectiva promoção a distintos graus
militares. Todavia, existem alguns aspectos curiosos no Memorando como a
transformação do FCD em partido político.
Não sei qual
é o enquadramento que este acordo pode ter no actual ordenamento jurídico
angolano, pois ela não permite partidos regionais. Aliás, o próprio Estatuto
Especial para Cabinda não tem qualquer respaldo na actual Constituição
angolana. Outro aspecto que figura no acordo é a redução substancial do
contingente militar das FAA em Cabinda. Nestes nove anos o que temos
assistido é, paradoxalmente, o incremento do contingente militar em
Cabinda Por conseguinte, atendendo ao principio PACTA SUNT SERVANDA (os
acordos devem ser cumpridos), a parte do Governo não cumpriu o acordo, mesmo
sendo o mínimo dos mínimos que foi ´´conseguido´´, e nem está interessado em
fazê-lo. A outra parte já não existe porque foi politicamente absorvida,
pelo que não tem nem autoridade moral nem meios de coacção para obrigar o
parceiro a cumprir o acordo. Estamos claramente diante de um acordo win-lose
(ganha-perde).
4) Como foi
acolhido pelas chancelarias diplomáticas em Luanda?
Proponho à
vossa consideração o comunicado de imprensa da embaixada dos EUA em Luanda, por
ocasião da assinatura do Memorando do Namibe:
«Os Estados
Unidos apoiam fortemente o processo de paz para Cabinda. A assinatura do
Memorando de Entendimento constitui um passo significativo para promover a paz
e a reconciliação em Angola. Para o povo de Cabinda, o Memorando de
Entendimento é mais do que um simples documento sobre paz e reconciliação; é
pois uma promessa para o desenvolvimento económico e de crescente influência
política. Aguardamos ansiosamente ter conhecimento dos pormenores do Memorando,
incluindo o estatuto especial para Cabinda e a implementação dos vários
componentes do acordo. Na qualidade de amigo de Angola, acreditamos que este é
um marco importante, estabelecido pela liderança de Angola».
No cômputo
geral, esta foi a atitude ´´diplomaticamente´´ correcta tomada pelas distintas
missões diplomáticas sedeadas nas capital de Angola. É a mesma atitude que se
repete em cada pleito eleitoral. Preferem fechar os olhos aos vícios do
processo e aplaudir o que daí resultar, mesmo que a montanha tenha parido um
rato. Os Estados Unidos da América sabiam da trivialidade do processo e tinham
conhecimento de que Bento Bembe era o homem que a justiça americana procurava.
Aos olhos
dos EUA Bento Bembe não passava de um terrorista (visão que não partilho porque
é preciso distinguir movimentos guerrilheiros de grupos terroristas), já que o
rapto de cidadãos americanos é um acto terrorista. O nosso compatriota Artur
Chibassa foi raptado em Kinshasa, julgado e condenado pela justiça americana e
está lá apodrecer nas cadeias americanas por esse crime. O aplauso ao Memorando
de Entendimento do Namibe só pode ser um acto de pura ironia e de cinismo por
parte dos EUA. Quando, depois da assinatura do acordo, foi abordada sobre o
futuro do Bento Bembe em relação ao seu processo nos EUA, por um companheiro
meu da sociedade civil de Cabinda, a antiga Embaixadora americana em Angola,
Cynthia Effird, foi peremptória: o mandado de captura emitido pela justiça
americana continua em pé. Quid Juris?
5)
Resultados: O Memorando de Entendimento não foi bem acolhido em Cabinda,
embora tenham tentado ´´encenar´´ actos públicos de apoio ao mesmo, pondo a
desfilar militantes da OMA, da JMPLA, do movimento espontâneo, crianças das
escolas primárias e secundárias, pelas artérias principais da cidade de
Cabinda, a realidade pura e dura não tardou. Os discursos proselitistas do Bento
Bembe deixavam claro que ´´uma andorinha não faz a primavera´´. Pelos vistos, o
PR José Eduardo dos Santos, estava ao corrente das críticas contra o ME em
Cabinda, por isso, no seu discurso proferido em Cabinda aos 10 de Agosto de
2007, fez questão de referir-se a isso nestes termos:
«No quadro
dos entendimentos alcançados, definiu-se um estatuto especial para a província
de Cabinda. Qualquer trabalho do homem nunca é um trabalho totalmente perfeito,
é sempre um ponto de partida, nesse caso concreto, é uma base de entendimento
que nos permite marchar juntos, construir algo em comum (…). Nós iniciámos a
implementação do estatuto especial, e daqui 12 meses, 18 meses, daqui 24 meses,
poderemos fazer um balanço, ver o que se aplicou bem na prática, ver o que devemos
corrigir para melhorar, portanto o que devemos fazer para aperfeiçoar todos os
nossos instrumentos de acção, o estatuto, os programas e até porque não outras
leis que nos permitam então criar as energias ou as sinergias, como se tem
dito, para avançarmos todos juntos para a construção de um futuro que seja
risonho, que seja bom para todos. Eu sei que há uns que dizem que o que está
feito não é perfeito, poderia ser melhor, não dizemos que estamos contra, que
estamos a favor, vamos dizer, apliquemos primeiro o que temos, daqui a algum
tempo poderemos corrigir, onde houver falhas poderemos melhorar, poderemos
aprimorar tudo, o que interessa é que conversemos sempre e que discutamos
sempre os nossos problemas e nos locais apropriados para manter a unidade,
manter o espírito de reconciliação nacional e concentrar a nossa atenção
naquilo que é essencial».
Infelizmente
não só passaram os 24 meses, mas nove anos. Neste período nós, os cabindas,
temos estado a comer o pão amargo da opressão e das represálias políticas
servido a preceito pelo regime contra os ´´dissidentes´´ e os ´´dissonantes´´
do ME.
Em corolário
podemos dizer tout court que os resultados dos ME foram os seguintes:
1.
Endurecimento do regime e a manutenção a todo o custo do status quo;
2. O ME começou por ser uma rendição, mas na medida que passa o tempo vai sendo uma resignação;
3. O Recrudescimento de operações militares e de inteligência dentro e fora das fronteiras do Enclave, culminando na captura e execução sumária de combatentes da FLEC, a despeito das convenções de Genebra.
4. O amordaçar constante de figuras internas que pretendem uma abordagem mais profunda do problema de Cabinda;
5. Decapitação e descapitalização deliberada da classe empresarial cabindense como estratégia para anular supostos apoios à guerrilha;
6. Extinção arbitrária, por via judicial, da Associação Cívica de Cabinda – Mpalabanda – parceira e membro fundador do FCD.
7) Cenários
possíveis:
1) O
arrastamento da situação actual até ao seu colapso natural; (do interesse da
Casa de Segurança do PR)
2) Revisão profunda do processo para um acordo mais justo e mais inclusivo; (seria do interesse dos Cabindas que aceitam o ME como um ponto de partida que pode ser melhorado, na lógica e na perspectiva do Presidente dos Santos. Estão em curso algumas movimentações neste sentido e já fui contactado).
3) Reconhecimento da nulidade e da ineficiência do acordo e o engendramento de um plano negocial fora do Memorando do Namibe; (do interesse dos cabindas não aderentes ao ME, mas pouco viável para os signatários do ME e seus orquestradores).
Conclusão
Se em
quarenta anos de conflito político e militar entre Cabinda e Angola, o melhor
que se conseguiu foi o Memorando de Entendimento do Namibe, estaremos a fazer
tábua rasa à memória e a nihilizar a verdade. Não é eticamente correcto dar a
todo um povo o rótulo de estúpido e trata-lo como tal. Quando oiço dizer por aí
a expressão ´´lerpas que nem um cabinda´´, deparo-me sempre com esta dura
realidade: estão a tomar-nos de estúpidos. Lançam-nos algumas migalhas e nós
aplaudimos; fazem-nos promessas quiméricas, como as centralidades e o famoso
porto de águas profundas, e ficamos extasiados pela magnanimidade do senhor
Presidente da República, manifestando o júbilo com passeatas e maratonas!… Até
quando continuaremos a ser cabindas baratos?!
*Raul Tati,
na foto, docente universitário e activista cívico e defensor dos direitos
humanos