sábado, 13 de julho de 2019

OS PORTUGUESES NÃO NEGOCIARAM O TRATADO DA LUNDA TCHOKWE NUM DIA. LEVOU TEMPO.






Ntoni-a-nzinga: “Falta (ao MPLA) a capacidade de ouvir os que não participaram no que se quer corrigir”

Luanda - Ntoni-a-nzinga defende que se ouçam todos angolanos na resolução dos problemas do País, como é o caso do MPLA.

*Félix Abias
Fonte: Vanguarda

O País tem novo plano para combater os problemas sociais, o Plano Integrado de Intervenção dos Municípios (PIIM). Já sabe como vai ser implementado?
Vou lhe ser franco, ainda não analisei muito bem o plano. O único problema que tenho é que não sei como o Executivo chegou a esse ponto. Falou com as comunidades das áreas onde quer implementar? Se foi só a nível do partido, acho estranho. Porque já houve muitos planos que não deram resultados, inclusive a nível do próprio MPLA. Em 1984, numa entrevista à BBC, fui questionado o seguinte: “Se houver reencontro entre o MPLA e a UNITA, haverá paz em Angola?”. Respondi que não.
A paz tem de ser fruto do trabalho de todos angolanos. Se fizermos como nos anos anteriores em que a partir do que está a ser feito noutros países entrámos nos gabinetes e fizemos planos, não se vai a lado algum. Há pouco tempo o plano Água para Todos foi feito na mesma condição. Todos têm água? Corrigir o que está mal envolve todos. Quantas conferências internacionais tivemos em que foi se buscar pessoas do estrangeiro para serem prelectores mas não fomos às comunidades angolanas buscar pessoas para partilharmos as visões. Não vamos desenvolver Angola copiando o que os outros estão a fazer sem ouvirmos as comunidades, porque é isso que o colonialista quis e depois decidiu tudo. Estamos a seguir a mesma lógica.

O combate à corrupção e à impunidade não vai ajudar a direccionar melhor os recursos disponíveis?
Todos nós aplaudimos o combate à corrupção. Mas o problema é: quem está a combater e quem está a ser combatido? Quem?
Esta é a pergunta que estou a fazer. Na tradição Bantu, quando você está a falar e eu bato palma, estou de acordo consigo. Estamos a falar contra os corruptos.
 Quem é que não é corrupto no sistema?
Ainda não vi ninguém que se demitiu das funções porque não está de acordo com o que o outro está a fazer.
 Pode apresentar um, seja no Parlamento ou no Executivo?
Não será necessário que alguém faça alguma coisa para estancar a corrupção independentemente do que fez no passado?
Mas estamos a falar de hoje. Por isso é que estou a dizer que sentemos e coloquemos os assuntos, que os abrangidos nos erros cometidos, reconheçam que fizeram mal. Porque para se corrigir o mal é preciso aceitar que está mal.

O julgamento do antigo ministro dos Transportes, Augusto Tomás, não lhe diz nada?
É bom sinal. Mas é o único?
A justiça não deve seleccionar, senão deixa de ser legal e moral. O Executivo, na pessoa do Presidente da República, negou esta teoria e alega que está a depender da justiça...

Mas como é que não é selectiva?
Nas minhas pregações, tenho dito o seguinte: Se um cristão trabalha, vê as coisas a acontecerem mas não diz que está mal, está a perder a capacidade de dizer que isto está mal. Da mesma forma, se um militante sabe que a ordem que recebeu valores numa operação que não é lícita, mas aceita, deixa de ser militante.
É bom que aceitemos sentar , avaliemos seriamente e encontremos um entendimento comum. Do contrário não vamos conseguir. Hoje está um ex-ministro a ser julgado, mas há muitos que são ministros e fizeram a mesma coisa. Falta capacidade de ouvir os outros que não estavam no sistema, que não participaram nos erros que estão a querer corrigir, é aí onde o MPLA está a falhar.
João Lourenço não pode resolver todos os problemas sem ouvir aqueles que não estavam envolvidos.

Nem os encontros entre João Lourenço e membros da sociedade civil lhe dizem alguma coisa?
O Presidente bem quando recebeu membros da sociedade civil, mas temos que sentar e conversarmos como angolanos. São iniciativas boas, mas ainda há muito que fazer. E também não pode ser para impressionar as populações através dos media, tem que haver acções concretas. A relação com o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos, por exemplo, tem que ser séria. Não há ainda todas as provas, mas há elementos positivos – por exemplo, muitas vezes o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos tem reuniões com organizações antes da publicação dos relatórios sobre Direitos Humanos.

Mas não pode ser apenas com aquela organização com quem tem certa relação e as demais ficam de fora. Há discriminação?
Há, sim. Certas organizações mais abertas nem sempre são acomodadas pelas instituições do Executivo.

Quer citar exemplo quando falou na necessidade de acções concretas?
Como disse, de Dezembro até agora, quantas conferências internacionais realizadas sobre assuntos de Angola e que para os quais trouxemos até antigos presidentes de outros países, quando nós no País nem falamos?
Por exemplo, é um erro grave o MPLA confundir as autarquias com administração. A implementação das autarquias é o primeiro passo para que a independência chegue à casa de todos angolanos. Autarquia é primeiramente um acto político, depois é que vêm aspectos técnico-administrativos. É essa confusão que se cria, querem controlar a situação, não porque querem servir o povo, desculpa mas esta é a conclusão a que cheguei. Os portugueses não negociaram o Tratado da Lunda Tchokwe num dia. Levou tempo. E aqueles senhores que negociaram com eles nunca passaram pela escola.

Reitera ser contra o gradualísmo na implementação das autarquias?
Já o disse publicamente. As autarquias devolvem a dignidade aos cidadãos. É para mim o ponto de partida. Como acto político, não há razões para que as autarquias sejam implementadas de forma gradual. Os 164 municípios que temos, na maioria, foram criados pelos portugueses. Eu já disse: Angola foi criada pelos portugueses e para os portugueses, e não para os angolanos.
 Nunca esqueçam isso. Se já criamos províncias, porque é que não podemos mudar os municípios?
O importante é que todos os cidadãos sejam envolvidos. Hoje para concorrer a Presidente da República tem que se estar atrelado a um partido político. Como membro da sociedade civil, já defendeu a revisão constitucional.
Se quisermos corrigir o que está mal e melhorar o que está bem, temos que rever isso. Sabemos que a Constituição actual não como era desejado. E o MPLA tem que ter coragem de reconhecer isso, aliás, uma das coisas de que lamento muito. O Partido deu entrada a uma proposta de Constituição à Assembleia Nacional. Semanas ou meses depois, teve que retirar a proposta para substituí-la pela proposta do presidente. A Constituição foi preparada para atender casos que não são necessariamente da vida nacional, mas da vida dos dirigentes. É esta Constituição que temos. Se realmente queremos corrigir, este é um dos pontos. E eu já tenho dito que gostaria de ver os deputados a falarem em nome das suas comunidades. Todo deputado tem que representar um grupo. Isto é que é democracia. Mas temos deputados dos círculos provinciais.
Dos 2020 deputados, do círculo provincial são apenas 90, os demais são do nacional. O Parlamento deve ser um espaço cujo debate deve reflectir a vontade do povo, mas os deputados não falam com o povo. E os que falam com o povo não têm a mesma influência. Lá o partido diz o que se considera como regra. Este é outro problema. Os que estão no Parlamento representam a direcção que os colocou lá, nem sequer foram escolhidos pelos militantes.
Espero que o que está a acontecer agora no Partido no poder venha realmente alargar-se a todos.

O que está acontecer no MPLA?
Vejo que no congresso que tiveram, os candidatos foram indicados pelos órgãos do partido a nível provincial.

Quer dizer que está satisfeito com como o novo rumo do MPLA?
Satisfeito no sentido reservado, sim. Não sou militante, mas de fora estou a ver que as ideias são boas. Quando o ex-Presidente lançou o slogan “corrigir o que está mal e melhorar o que está bem”, João Lourenço pegou nisso e fez dele um compromisso, se continuar vai mudar muita coisa. Há uma certa aceitação no início. Tenho apenas reservas.

Em que se consubstancia a reserva?
Por estarem habituados a dizer uma coisa e a fazer outra. Agora estamos a falar de marimbondos, e os marimbondos são do mesmo grupo. A pergunta é: quem é que não bateu palma quando se dizia que tudo estava a correr bem?
Tenho lutado contra isso na igreja. Quando prego, todos batem palma, e pergunto: estão a bater palma porquê?
Porque o princípio de bater palma é para dizer “estou contigo”. Agora bater palma quando estou lá e amanhã, quando já não estiver, eu sou o mal?
Quem bate palma quer dizer que participou comigo no que fiz. Precisamos de sentar e admitirmos as nossas culpas.

A propósito do MPLA, João Lourenço introduziu Ilídio Machado e Mário Pinto de Andrade nas contas dos presidentes.
Gostei bastante e felicitei-o dentro de mim (no coração), embora sem manifestar publicamente. Especialmente num momento certo, que é num congresso, a dizer que não sou o segundo presidente, nem o terceiro, mas há outros. Por exemplo, o presidente José Eduardo dos Santos esteve na China não sei quantas vezes, tal como João Lourenço, quem é que perguntou aos chineses por Viriato da Cruz?
O corpo dele continua lá, porque é lá onde morreu. Do pouco que conheço do MPLA, se os outros foram presidentes, é o Viriato que fez o trabalho mais importante, que redigiu o manifesto, que teve a visão optada pelo partido. Fez o pouco que podia ter feito naquelas condições, mas por diferenças na visão, ficou abandonado a ponto de morrer lá e nunca o MPLA falou dele.

São os tais valores de que se refere?
Criamos um valor cultural que vai custando caro ao País, de pensar que é só o líder que sabe. Não há nenhum líder que sabe tudo. Aliás, o líder funciona melhor quando rodeado de pessoas com boa criatividade, e Viriato foi criativo no início do movimento que hoje se transformou em partido. Mas o MPLA não lhe dá o que merece. Quando ouvi da Rádio que o mais velho Joaquim Pinto de Andrade morreu, lacrimejei.
Porque são pessoas que levantaram vozes em momentos difíceis, arriscando a vida – e quando nos tornamos independentes consideramos eles como se não existissem. Agora, depois de morrer é que vamos mostrar que era importantes. Isso é mau. Estas são as tais coisas que devem ser realmente corrigidas, se de facto queremos corrigir o que está mal.

Quer dizer que há muito que fazer no MPLA?
O MPLA tem muita coisa por fazer internamente. Fui chamado pela televisão para falar do 27 de Maio, que é estado ou Estado partidarizado, hoje não. Que o MPLA faça o seu trabalho internamente, para corrigir o que fez. O partido nunca tomou uma iniciativa de reconciliação com esses militantes, por mais que muitos já não façam parte das suas fileiras. Este para mim é um problema. Eu, por exemplo, no dia 27 de Maio de 1977, fui eleito secretário-geral do Conselho das Igrejas Cristãs em Angola (CICA), numa reunião em Luanda. Fui eu que a convoquei e a presidi. Dois pastores participantes que vieram do Cuanza-Sul, no seu regresso, foram presos.

Qual é a acusação?
Foram a Luanda participar da reunião dos apoiantes de Nito Alves. Felizmente a mensagem chegou a mim e ao bispo Emílio de Carvalho, na altura eleito presidente da assembleia. Tivemos que fazer muito esforço aqui e ordenarem que os libertassem, porque não tinham nada a ver com os nitistas. E há outra questão que o MPLA deve reconhecer.
Em Julho de 1979, no Sumbe, quando o presidente Agostinho Neto começou aquela volta ao País, contou que uma mãe escrevera-lhe uma carta a dizer que o filho tinha sido retirado da casa às 03 da manhã e nunca mais voltou.

Neto revoltou-se contra o seu partido. Seguramente que a TPA tem isso nos seus arquivos. Quem é que fala disso?
É naquela linha de discurso que ele vem com o slogan “o mais importante é resolver o problema do povo”. Eu já perguntei aos camaradas que comigo militaram no MPLA quando é que vão explicar ao povo por que razão o presidente Neto disse aquilo. Pegamos a frase para mobilizar as pessoas mas não olhamos para a razão por que foi dito. Qual é a razão? Eles estavam em conflito no próprio Comité Central. Entre muitos problemas estava o 27 de Maio.

Então foi no calor da discussão que lançou a frase no sentido de apaziguar as coisas e focar-se nos problemas das populações?
Ele estava a tentar introduzir isso num discurso. O slogan “o mais importante é resolver o problema do povo” foi lançado na cidade entre Lubango e Ondjiva – onde o governo provincial funcionava. Até hoje o partido nunca esclarece o que aconteceu para que ele desse essas voltas ao País, incluindo Malanje, Ndalatando, Uíge, e quando regressa, doente, é levado à União Soviética para tratamento e volta a Angola morto.

Acha que está aí a causa da morte de Neto?
Não gosto de entrar nestas coisas. Mas o que sei é que morreu num momento que parece ter tido ideias contrárias à maioria do seu partido. Por que razão é que vai dizer que o mais importante é resolver os problemas do povo, saindo de uma reunião suspensa por duas vezes, em Maio de 1979 e em Junho do mesmo ano? Foi daí que decidiu dar uma volta às províncias. Parecia outra pessoa.

Mas pode-se dizer que já se começa a chegar ao ideal quando o líder do partido “reabilita” figuras como Mário Pinto de Andrade e Ilídio Machado?
Sim. É um exercício que pode resultar na verdadeira reconciliação.