Vem ai, O 27 de Maio de 1977 em
Angola
Há 40 anos,
Agostinho Neto, vencedor da disputa entre duas alas do MPLA, e também vencedor
e proclamador da independència de Angola entre a FNLA de Holden Roberto e a
UNITA de Jonas Savimbi, deu luz verde a uma chacina que terá chegado às 30 mil
vítimas.
As duas revoluções de Sita
Valles
A sua curta
vida apresenta todos os ingredientes de uma tragédia grega. A militante que se
entregou sem rodeios às revoluções portuguesa e angolana foi devorada por esta
última. Pior ainda, o seu nome tornou-se maldito em ambos países. Nenhum
argumento pode justificar que se lhe retire o direito à memória. Recordemo-la,
pois. Por Luis Leiria
Sita Valles
viveu duas revoluções com a intensidade e a entrega que só as convicções muito
fortes podem proporcionar. Em pleno “Verão Quente” de 1975, trocou a portuguesa
pela angolana, porque achava que era no seu país natal que mais falta fazia. As
revoluções, porém, são cruéis, pois frequentemente devoram os seus próprios
filhos. Numa data indeterminada, entre julho e agosto de 1977, Sita foi
fuzilada em Angola por ordem daqueles que pouco tempo antes chamava de
“camaradas”. Tinha apenas 25 anos.
A sua curta
vida tem todos os ingredientes de uma tragédia clássica. Nesta, o herói
experimenta uma mudança de fortuna, passando da felicidade ao infortúnio, e
essa reviravolta leva-o à destruição não por ser vil, mas por cometer algum
grave erro. Um erro que se explica pela dificuldade de enfrentar enigmas cujo
duplo sentido fica por decifrar. Estas características da tragédia grega,
estabelecidas por Aristóteles, estão todas presentes na história de Sita
Valles, que tinha nome de deusa hindu (Sita) mas teve o destino dos filhos de
Cronos, devorados pelo pai.
O autor
desta reportagem passou os dois últimos meses a tentar decifrar alguns enigmas
na vida de uma militante que todos concordam em dizer que era determinada,
apaixonada, generosa. Mas para decifrar o enigma Sita é preciso compreender as
entranhas do episódio ocorrido a 27 de Maio de 1977 em Angola. Depois de ouvir
o testemunho de muitas pessoas, ler milhares de páginas de textos e livros, e
até localizar documentos praticamente inéditos, ou pelo menos pouco conhecidos,
a minha visão é diferente da que tinha à partida e, acredito, mais próxima da
verdade.
Uma
convicção, porém, não foi abalada. A de que Sita Valles tem direito à memória.
Que o seu nome tem de deixar de ser tabu no partido que ela escolheu para
expressar o seu inconformismo. O mesmo partido que, na “hora H”, não mexeu um
dedo para defendê-la. Passaram-se 40 anos. O modelo de sociedade pelo qual
Sita, Nito Alves e José Van Dunem lutavam, desmoronou com o muro de Berlim. A
Guerra Fria deixou de existir, por mais que os saudosistas tentem hoje recriar,
de forma caricatural, a mesma bipolaridade daqueles tempos. Não há táticas, não
há interesses estratégicos que justifiquem o tabu sobre o nome maldito.
O fim e a caça às bruxas
Quando a 9ª
Brigada, a principal unidade militar de Luanda, simpática a Nito, se rendeu,
por não ter capacidade para enfrentar os tanques e blindados cubanos, o destino
de Sita Valles estava traçado. Mas sabemos muito pouco sobre o que lhe
aconteceu. Sabemos que fugiu com o companheiro e que ambos foram capturados
três semanas depois na aldeia de Kaleba, porque uma mensagem enviada por eles
terá sido interceptada.
Mas há muita controvérsia sobre os destinatários e o
conteúdo da mensagem. O que é certo é que o Jornal de Angola de 19 de
junho anunciava a prisão de ambos. E uma mensagem da embaixada de Portugal para
Lisboa datada de 8 de julho anunciava que ambos tinham sido fuzilados naquela
data. A biógrafa, Leonor Figueiredo, situa o fuzilamento mais tarde: no dia 1
de agosto. A essa altura já tinham ocorrido centenas de fuzilamentos e milhares
de prisões. Um discurso de Agostinho Neto no dia 28 de maio, quando foi
encontrada uma ambulância incendiada que tinha dentro sete corpos de ministros,
militares e pessoas ligadas ao governo, foi à televisão anunciar que
“certamente, não vamos perder muito tempo com julgamentos.
Nós vamos ditar uma
sentença.” Com isso, deu rédea solta ao processo de caça às bruxas. As rádios
emitiam spots conclamando a população a denunciar os “fraccionistas” fugidos, o Jornal
de Angola publicava manchetes como “Amarrem-nos aonde forem encontrados”,
ou “Todos os fraccionistas pagarão pelos seus crimes”. A orgia de sangue durou
talvez dois anos e provocou a morte, segundo cálculos da Amnistia
Internacional, de 30 mil pessoas, que tecnicamente se encontram desaparecidas,
porque o Estado angolano não admitiu essas mortes nem forneceu certidões de
óbito e não se sabem onde estão os seus restos mortais.